segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Meus concursos na Faculdade de Medicina da UFMG

Como havia decidido ingressar no magistério, tratei logo que retornei dos Estados Unidos de escrever minha tese de doutoramento.
Naquela época o título de doutor só poderia ser obtido após aprovação da tese, por banca examinadora eleita pela Congregação da Faculdade de tese de doutoramento.
Como estava muito interessado em tumores das glândulas salivares, e como havia sido publicado recentemente pelo AFIP (“Armed Forces Institute of Pathology”), fascículo relativo a tais tumores, de autoria de Foot e Frazell, considerados como das maiores autoridades no estudo histopatológico de tumores das glândulas salivares, resolvi escrever minha tese tendo por base tal publicação.
Levantei todos os casos existentes no serviço de Anatomia Patológica, do Prof. Moacyr de Abreu Junqueira, na Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, reexaminei as lâminas e reclassifiquei todos os diagnósticos.
Foram mais de uma centena de casos, porem só pude aproveitar aqueles em que os dados clínicos, tais como sexo, idade, localização e tempo de evolução haviam sido informados.
Pessoalmente fiz as foto micrografias, o levantamento bibliográfico ale de redigir a tese.
Ao iniciar o exame, foi estabelecido pela banca examinadora, que cada examinador disporia de cerca de trinta minutos para sua argüição e eu de vinte minutos para resposta, não podendo haver diálogos.
Aceitei tal condição e teve início a argumentação, que foi tranqüila com todos, os examinadores, com exceção de um dos mesmos, que quando iniciei minha resposta às suas argüições quis iniciar um diálogo de contestação, e eu fiz valer a condição, já acordada, de que não poderia haver diálogo.
Imediatamente ele virou-se de lado, enquanto eu respondia às suas objeções, o que me causou muita raiva e decepção, pois meu Pai, também Catedrático da UFMG estava presente e assistindo minha defesa de tese.
A seguir estão as objeções do referido examinador e minhas respostas:
1º Objeção: Seu trabalho não tem valor científico, pois não tem nada de novo, todo patologista já sabe, e além do mais o senhor não usou as técnicas histoquímicas atuais
. Resposta: Talvez um dia eu venha a escrever algo que seja novidade, e que o senhor julgue tenha valor científico. Nem todo patologista já sabe, pois tenho conhecimento de que recentemente um patologista diagnosticou como adenocarcinoma um adenoma pleomórfico em jovem de quinze anos. Meu trabalho é baseado em material correspondente a doze anos, em um serviço que tem o maior acervo de patologia cirúrgica de Belo Horizonte, e, portanto não seria possível o emprego de técnicas histoquímicas atuais inexistentes àquela época.
2º Objeção: Seu trabalho não está de acordo com a literatura atual.
Resposta: O Instituto de Patologia das Forças Armadas dos Estados Unidos está editando uma enciclopédia sobre tumores e convidando para escrever os diversos volumes, pessoas, que no seu entender são expoentes em tais tumores. No entender da AFIP, os maiores expoentes em tumores das glândulas salivares maiores são Foot e Frazell, escolhidos para escrever o fascículo nº 11, editado a pouco mais de um ano, o qual tomei por base, como consta de minha tese. Meu trabalho está, portanto de acordo com a literatura atual. Aqui está tal volume. Abri minha pasta e mostrei-o a todos.
3º Objeção: Suas descrições são tão sucintas que a pessoa lê e não consegue fazer o diagnóstico.
Resposta: Durante uma reunião da Academia de Ciências de New York, à qual eu estava presente, esta mesma objeção foi feita ao Prof. Klemperer, sobre um trabalho que o mesmo havia apresentado. Farei, portanto minhas, se bem que adaptadas ao local, a resposta do Prof. Klemperer: Professor se descrever-lhe, da melhor maneira, a figura de meu tio, e lhe disser que às dezessete horas ele estará na Praça Sete, o senhor vai lá e não o encontrará. Se, entretanto eu lhe mostrar o retrato dele, o senhor irá encontrá-lo. Por isto, minhas descrições são sucintas, porem as fotografias estão aqui.
Neste momento abri a tese na parte relativa às ilustrações e terminei minhas respostas, com um agradecimento à Banca Examinadora.
Claro que o examinador em questão aprovou-me com a nota mínima (sete) enquanto minha média final foi de 9,2.
Como havia a notícia de que com a aposentadoria do Prof. Mário Mendes Campos, a disciplina de Patologia Geral seria excluída do currículo, comecei trabalhar para escrever tese de livre-docência em Anatomia e Fisiologia Patológicas.
Fui surpreendido ao saber que havia candidato já inscrito para docência livre em Patologia Geral e resolvi inscrever-me no ano seguinte, para docência da referida disciplina, usando a tese que já se encontrava em composição.
Ao mesmo tempo resolvi trabalhar também uma segunda tese, na suposição de que uma vez obtido o título de docente livre, concorreria a um futuro concurso para catedrático.
Minha surpresa foi ainda maior, quando já inscrito, e antes de ser marcado meu concurso para docente livre, foi aberto o edital para o concurso de professor catedrático, com inscrições terminando em dezembro.

Oficiei à Diretoria da Faculdade dizendo que como era meu desejo concorrer à cátedra, e querendo concorrer à mesma já com o título de docente livre, solicitava a realização do referido concurso antes de encerradas as inscrições para o concurso de catedrático.
Atendendo à minha solicitação, o concurso para docência livre foi marcado para o mês de outubro.
A banca examinadora do mesmo foi composta por cinco professores, dos quais três eram de outras universidades e dois da nossa Faculdade.
No programa do concurso foi incluída toda a matéria de Patologia Geral, acrescida de Patologia Clínica, obrigando-me, a saber, de cor, durante a prova prática todas as execuções dos métodos, dosagens e valores normais, como dos exames de sangue, urina e líquor, por exemplo. Para a prova prática foram sorteados: reação de Kline em liquor; sangria de cobaia e contagem global e específica de leucócitos; exames de lâminas de cortes de processos patológicos alem de avaliação do estado imunológico da cobaia, tendo em vista os achados hematológicos.
Solicitei amostras de líquor sabidamente positivo e negativo, para o devido controle, tendo a banca examinadora informado que não os possuía e eu poderia realizar a reação na amostra a mim entregue.
Como havia notado que um examinador, o único que, na banca, era patologista clínico havia retirado as instruções do reativo que acabara de me ser entregue, indaguei se poderia usar as mesmas proporções utilizadas em reativos produzidos por outros laboratórios.
O professor, pego de surpresa, antes de ler as instruções, informou-me positivamente, com a plena concordância da banca.
Em todas as provas, como títulos, escrita, didática e defesa de tese tive bom desempenho e no final fui aprovado por unanimidade.
Minha inscrição no concurso para catedrático de Patologia Geral foi feita no último dia do encerramento das inscrições, sendo eu o terceiro candidato a ser inscrito.
O primeiro inscrito foi o Dr. Pimenta de Melo, e o segundo o Dr. Edmundo Chapadeiro.
Já portador do título de docente-livre, coube-me a regência da disciplina, e assim, alem de prepararas aulas, tanto para a Faculdade de Ciências Médicas, como para a disciplina que como docente estava regendo na Faculdade de Medicina da UFMG, tinha que estudar para o concurso e trabalhar no laboratório da Santa Casa.
Foi realmente um período que muito me sobrecarregou, porem sempre tive o apoio e o incentivo da família, do meu tio Moacyr e dos amigos.
Vários colegas pediram ao Moacyr para me aconselhar a desistir desta “loucura”, pois não sendo eu o candidato da Faculdade, fatalmente seria reprovado, e alem do mais minha tese era muito fina, e as dos outros candidatos bem mais grossas!
Até mesmo à Cor Maria, minha esposa, foram feitos pedidos para que me aconselhasse a desistir, posto que iria competir com candidatos de alto gabarito, e que eu ainda era muito jovem para tentar uma cátedra.
Em vez de receber conselhos para desistir, todos me incentivaram cada vez mais, pois reconheciam em mim capacidade e competência.
Começado o ano letivo lecionei todas as aulas, só interrompendo as mesmas durante a realização do concurso, tendo avisado aos alunos no final da aula que antecedeu ao concurso, que caso não fosse eu o indicado para a cátedra, não iria continuar lecionando a disciplina, que no meu modo de ver deveria ser direito daquele que fosse indicado.
Convém lembrar que o concurso contava de cinco provas; Títulos, Escrita, Prática, Didática e Defesa de Tese. Para as provas Escrita, Prática e Didática eram exibidas aos concorrentes, listas de questões organizadas pela junta examinadora, sendo na ocasião perguntado se alguém tinha objeção ou não a alguma questão, quando então era feito o sorteio pelo primeiro candidato inscrito. Uma vez sorteadas as questões, não se podia fazer uso de qualquer livro, artigo, ou pesquisa bibliográfica.
A questão sorteada para a prova inscrita foi de mecanismos e alterações dos mecanismos de permeabilidade celular e vascular, assunto que muito me agradou, pois seria como que uma introdução ao estudo dos processos inflamatórios, que eu estava atualizado com as últimas publicações internacionais. Foi-nos dado um prazo máximo de seis horas, tendo havido um pequeno horário para alimentação (um copo de leite e um sanduíche).
Escrevi dezesseis folhas de papel almaço,todas previamente rubricadas pela banca examinadora, revi, numerei, ordenei, e as entreguei após cinco horas e meia do início da prova.
Para a prova didática foi sorteada questão relativa a processos degenerativos e infiltrativos. Cada concorrente tinha cincoenta minutos para fazer sua exposição, ficando os demais concorrentes isolados em sala, com o secretario (Silvio da Matta Machado), não podendo, portanto ter conhecimento da exposição feita pelo candidato. Como fui o terceiro inscrito, fiquei mais de duas horas isolado antes de começar minha exposição, tendo terminado a mesma em exatamente cincoenta minutos.
Na manhã seguinte teve início a prova prática, com a lista das questões, que foram numeradas, e não sofreu objeção de nenhum dos concorrentes. O sorteio das mesmas foi feito pelo primeiro candidato inscrito, sendo que eu e o segundo candidato fomos retirados para um apartamento do Hospital da Clínicas, em companhia do secretário Silvio da Matta Machado, onde permanecemos isolados, sem qualquer comunicação com o exterior e sem podermos conversar sobre assunto médico.
O primeiro inscrito iniciou a prova prática às nove horas da manhã, e eu e o segundo inscrito almoçamos ao meio dia. Às 13 horas, como não haviam chamado o segundo concorrente, calculei que fatalmente uma das questões seria realizar alguma reação de fixação de complemento, o que pela lista de questões lidas anteriormente, justificaria tal demora.
Às 14,45 horas vieram chamar o segundo inscrito e eu permaneci com o Dr. Silvio.
Presumindo que iria ficar muito tempo esperando, tratei de dormir um pouco e de solicitar um baralho quando joguei um pouco de paciência, perdendo todas as vezes. Às l8: 00 horas jantamos um pouco e às 20:45 horas fui chamado para iniciar minha prova prática, que começou às 21:00 horas.
Como já havia previsto, uma das questões era realizar uma reação de fixação de complemento (Wassermann). Outra questão foi sangrar um coelho e de calcular o tempo de protrombina. Um dos examinadores, Professor XXX, insistiu para que eu colhesse o sangue do coelho puncionando veia central da orelha, pôr eu me recusei a fazê-lo, pois sabia que apesar de parecer a mais grossa, ela sempre se move com facilidade e torna a colheita mais difícil. Como ele insistiu, tentei puncioná-la e como ela moveu-se, ele disse que eu não estava conseguindo colher o sangue. Imediatamente retruquei que iria colher o sangue puncionando o coração, o que fiz com sucesso, assim como determinei o tempo de protrombina, que coincidiu com o tempo obtido pela banca examinadora. As lâminas histológicas coradas por hematoxilina – eosina foram de meningite tuberculosa (no corte havia um pequeno fragmento de cerebelo); encefalite crônica viral e linfadenite com hiperplasia histiocitária. Em minhas respostas por escrito descrevi os quadros microscópicos como processo inflamatório crônico granulomatoso com necrose caseosa, em meninge, com diagnostico provável de tuberculose, dependendo de coloração para b.a.a.r. e PPD; No corte de cérebro descrevi a presença de neurônios necróticos e degenerados, alem de vários linfócitos, alguns formando manguitos perivasculares, constatando ainda endarterite e pequenos focos de hemorragia. Meu diagnóstico foi de encefalite viral, com tipo a ser determinado por exame laboratorial, como por exemplo, fixação de complemento.
Na lâmina de linfonodo minha descrição foi de linfonodo apresentando aumento difuso de células retículo-endoteliais, algumas exibindo eritrofagia. Meu diagnóstico foi de linfadenopatia provavelmente em caso de febre tifóide, dependendo de confirmação por teste como o teste de Widal.
Foram-me dadas duas peças cirúrgicas para proceder a exame macroscópico.
A primeira era de pulmão de criança, que procedendo à dissecção e cortes, cheguei à conclusão de tratar-se de provável broncopneumonia. Neste ponto o examinador XX perguntou-me afinal qual era o meu resultado. Respondi que só poderia dar o resultado final caso pudesse fazer um exame microscópico, pois como na Universidade de New York, local onde fiz minha pós-graduação, inicialmente faz-se o diagnóstico anatômico provisório, em seguida os achados microscópicos, e somente então firma-se o diagnóstico final. Conclui afirmando que meu resultado anatômico provisório era de broncopneumonia.
A segunda peça foi de um fígado com acentuada esteatose, diagnóstico com o qual toda a banca estava de acordo, porem o examinador XX solicitou que eu informasse se a esteatose era peri lobular ou não, e indicando um corte transversal de provável vaso, solicitou que eu delimitasse macroscopicamente um lóbulo hepático.
Nesta altura, já passava das duas horas da madrugada, exausto solicitei a reunião da banca examinadora e disse-lhes, que todos eles e eu próprio havíamos aprendido erroneamente, em bases microscópicas, a delimitação dos lóbulos hepáticos, e que somente depois dos estudos tridimensionais de Hans Elias é que a referida delimitação pode ser corretamente esclarecida. Confessei: eu não consigo delimitar macroscopicamente lóbulo hepático.
Quando já me julgava perdido, o Prof. Bezerra Coutinho, em bom tom disse: eu também não!
O Professor XX batendo os pés caminhou até o fundo da sala e disse já estar satisfeito.
Lavrei o meu relatório e às três horas da madrugada peguei o carro e rumei para casa
Na manhã seguinte fui até a Faculdade para assistir a defesa de tese do primeiro candidato inscrito e percebi que o mesmo não estava saindo bem. Retirei-me para casa e só voltei à noitinha para assistir a defesa de tese do segundo inscrito. Para minha surpresa não estava havendo a defesa da tese e então resolvi saber o motivo. Encontrei-me com dois colegas que sabia serem íntimos do segundo candidato, tendo um deles dito que o mesmo estava muito agitado e fora de si, e o outro colega informou-me que o candidato estava imóvel e incapaz de raciocinar.
Neste momento aproximou-se de mim o Dr. Guilherme Soares, que se encontrava à disposição da Diretoria da Faculdade, e informou-me ter o candidato desistido, alegando motivo de doença. Aconselhou-me a voltar para casa e só retornar na manhã seguinte para defender minha tese.
Voltei para casa com a sensação de que alguma coisa estava acontecendo, e confesso que temia pelo resultado, pois sabia que os professores XX e XXX não simpatizavam com minha pretensão.
Minha esperança era o professor Bezerra Coutinho, que conhecido por sua grande inteligência, sua vasta cultura, sua ética exemplar, não iria permitir qualquer deslize da banca examinadora.
Dormi bem e pela manhã, após um banho e de um desjejum reforçado, parti para a escola. Logo ao chegar o professor XXX aproximou-se de mim e disse-me para ser verdadeiro em minhas respostas. Retruquei-lhe que nunca faltei com a verdade e que iria ser verdadeiro, como sempre fui.
Os primeiros examinadores foram os três de outras universidades, tendo os dois primeiros elogiados minha tese e solicitado alguns detalhes que respondi com a alegria de verificar que haviam lido com todo cuidado e atenção o conteúdo da mesma.
Quando foi dada a palavra ao Professor Bezerra Coutinho, confesso que fui tomado de forte emoção, pois ali estava eu diante daquela grande personagem, que no meu modo de ver seria o fiel do julgamento.
Ao começar sua explanação disse que eu era bastante jovem, com grandes oportunidades futuras. Neste momento pensei: agora só falta dizer para que quando eu ficar mais maduro, aí então poderá almejar uma cátedra. Isto, entretanto não ocorreu e pó que o grande mestre disse: “você me fez lembrar-se de um jovem que também concorreu a uma cátedra em Recife, mas não com sua inteligência e seu conhecimento, amplamente demonstrados no decorrer deste concurso”. Percebi que estava referindo-se a si mesmo, e neste momento tive a noção de que conquistaria a cátedra. Os demais elogios nem pude escutar, tamanha a emoção de que fui possuído.
Em minha resposta ao Professor Bezerra Coutinho pude confessar-lhe minha grande admiração pelo mesmo, desde meu tempo de estudante, quando esteve aqui em Belo Horizonte, juntamente com o Professor Barros Coelho proferindo palestras. Agradeci penhoradamente seus elogios à minha pessoa assim como as considerações relativas à minha tese. Citei que se no futuro chegar a conclusões diferentes, conforta-me o dizer de Unamuno, de que “o homem que nunca se contradisse é porque nunca disse nada”.
Após pequeno intervalo para café falaram os professores da casa, que fizeram algumas considerações sobre a tese, tendo o Professor XXX dito que eu ingressava no magistério sem orientação científica. Em minhas respostas agradeci e esclareci os questionamentos sobre a tese.
Ao Professor. XXX protestei pelo fato de dizer que não tive orientação científica posto que ele e o
Professor XX, aqui presentes, como membros desta banca, foram meus professores durante o curso médico, e com certeza contribuíram para minha formação científica.
O resultado final foi que fui indicado por unanimidade, como vencedor do concurso para catedrático de Patologia Geral da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Medicina.
Confesso que foi com lágrima e um nó na garganta que dei a boa nova a meus pais, minha esposa, tio Moacyr, amigos e alunos.

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